Restos de Carnaval, Clarice Lispector
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No entanto,
na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil,
nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas
da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os
outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as
com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete.
Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração
escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal
modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
E as
máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha de
encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma
espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo,
eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não
era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu
mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.
Não me
fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa
tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para
enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então
a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano.
Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça
– eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável – e pintava minha
boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me
sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.
Mas houve um
carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que
tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga
minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa.
Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais,
suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia
pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel
crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias
mais belas que jamais vira.
Foi quando
aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe
de minha amiga – talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de
inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel – resolveu fazer para
mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele
carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser
outra que não eu mesma.
Até os
preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada:
minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia
usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos
estaríamos de algum modo vestidas – à idéia de uma chuva que de repente nos
deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua,
morríamos previamente de vergonha – mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria!
Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra,
engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o
que o destino me dava de esmola.
Mas por que
exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico?
De manhã cedo
no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado
pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim!
chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti
de rosa.
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.
Quando horas
depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas
alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido
sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não
era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé
eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha
fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso
lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.
Só horas
depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto
precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um
rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho,
grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de confete:
por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então,
mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia
reconhecido: eu era, sim, uma rosa.
– Clarice Lispector, no livro “Felicidade
clandestina”. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
1. O
que faz a narradora se lembrar dos carnavais de seu tempo de menina?
2. De
que forma a narradora participava do Carnaval durante a infância?
3. O
modo como a família permitia que a menina participasse do Carnaval era considerado
satisfatório por ela? Explique sua resposta.
4. Quando
criança, a narradora conseguia realizar um “sonho intenso” durante os três dias
que durava o Carnaval.
a) Que
sonho era esse?
b) Como
ela o realizava?
5. Em
que parágrafo a narradora começa a rememorar um carnaval específico? Copie do texto
um trecho que confirme sua resposta.
6. O que de tão importante a menina recebeu naquele Carnaval?
6. O que de tão importante a menina recebeu naquele Carnaval?
7. Transcreva,
em seu caderno, a frase do conto que resume a importância desse presente para a
narradora.
8. Releia:
“Mas por que exatamente aquele
carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico?”
a) A
narradora não consegue aceitar o fato de seu sonho ter sido comprometido. Que episódio
foi responsável por quebrar a expectativa que ela alimentava?
b) O
que salvou o Carnaval da narradora? Explique sua resposta.
9. Observe
os fragmentos abaixo:
!. “Não, não deste último
carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância [...]”.
II. “Ah, está se tornando difícil
escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo
me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada
já me tornava uma menina feliz.”
a) Cronologicamente,
o tempo flui do passado em direção ao presente e deste em direção ao futuro.
Esse movimento pode ser constatado nos trechos acima? Explique sua resposta.
b) Qual
é o elemento que organiza o tempo nesses fragmentos: a sucessão natural dos
acontecimentos ou o fluxo da memória e das sensações da narradora?
10. Em
duas passagens do texto, a narradora revela a sensação de que o tempo, para
ela, transcorre lentamente, e isso a incomoda. Transcreva essas passagens em
seu caderno.
11. Nesse
conto sobressai o tempo psicológico ou o cronológico? Explique.
12. Em
relação à marcação do tempo, a narradora-personagem é exata em uma informação. Qual
é essa informação?
Exercícios tirados de “Para viver juntos” – Português 9º ano. Edições SM,
2014.
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