A Literatura entre escombros
A
LITERATURA ENTRE ESCOMBROS
José Castello
(13/05/2012)
Vivemos em um mundo fluido, raso e
fragmentado, que se pulveriza e se desmancha. O mundo das imagens feéricas, do
noticiário em "tempo real", das grandes (e ilimitadas) redes
virtuais. O mundo da simulação, do duplo e do etéreo. Nesse mundo disperso e
desprovido de limites, a literatura parece perder o sentido. Para que serve,
então, a literatura hoje? A literatura está morrendo? Será ela devorada pelos
blogs, pelo Facebook e por outros artefatos do mundo virtual? Chegando à
pergunta que mais nos atormenta: a literatura tem futuro? Podem os jovens ainda
acreditar na potência da literatura?
Aposto, com ênfase, no futuro da
literatura. Mais ainda: aposto em sua força no presente. Em um mundo entre
escombros, em que tudo se parte e se dispersa, a literatura, na contramão,
oferece coesão e sentido. Em um mundo no qual tudo nos joga para fora, ela nos
joga para dentro. Em um mundo extrovertido, dominado pelas imagens, pelos
índices e pelas superfícies, ela nos conduz a um precioso exercício de
introspecção. Quanto mais o mundo se fragmenta e se liquefaz (para pensar nas
ideias de Zymunt Bauman), mais a literatura se oferece como um posto de
resistência. Quanto mais o sujeito e seu corpo se vêem presos — como tristes
aranhas — às redes virtuais e às jogadas comerciais, mais a literatura se
oferece como um território de liberdade interior e de subjetivação.
Volto à pergunta que mais nos
inquieta: como levar os jovens a entenderem isso? Cegos pelas luzes do
contemporâneo, eles vivem em uma espécie de presente perpétuo, no qual tudo se
equivale e tudo se repete. Tornaram-se prisioneiros do instante. Através do
Facebook, do Twitter, dos blogs e de outros recursos virtuais, eles vivem
perseguidos por um presente onipotente, no qual o passado se torna um resto
insuportável e o futuro é só uma miragem.
Arrastados pela web — detidos em
uma sucessão de janelas ("windows") que se desenrolam em abismo, eles
têm, cada vez mais, uma imensa dificuldade de parar. E portanto: dificuldade de
pensar. Sem pensamento, sem introspecção e meditação, ninguém se torna um
leitor. O leitor é aquele que para e — como um nadador perfilado em seu
trampolim — prepara seu salto sobre (ou dentro de) um livro. Sem silêncio,
contenção e divagação, não há literatura (não há leitor) possível.
Como levar os jovens a entender
que, na contramão do mundo veloz que os arrasta, existe um lugar onde é
possível voltar a si (como alguém que acorda depois de um desmaio) e se aproximar
de si mesmo? Infelizmente — e a culpa não é deles — os jovens costumam ter uma
visão "morta" de literatura. Quando pensam em um poeta como Castro
Alves, por exemplo, veem apenas os velhos bustos de bronze, roídos pelo tempo e
sujos pelos pombos, que se erguem em tantas praças "Castro Alves"
existentes no Brasil.
Esquecem-se (ou ignoram) que
Castro Alves foi um jovem romântico, apaixonado pela
vida e de espírito rebelde, cheio de vigor e de desejo, para quem a poesia era não só uma máquina de fazer sonhar, mas um instrumento de sedução e de afirmação. Morreu aos 24 anos — em pleno fogo da juventude — e deixou-nos uma obra corajosa e radical. Por que — nas escolas, nos colégios, nas universidades — insistimos em lhes dar só a primeira imagem do poeta, cheia de ferrugem e cheirando à morte? Por que insistimos em assassinar Castro Alves e sua poesia?
vida e de espírito rebelde, cheio de vigor e de desejo, para quem a poesia era não só uma máquina de fazer sonhar, mas um instrumento de sedução e de afirmação. Morreu aos 24 anos — em pleno fogo da juventude — e deixou-nos uma obra corajosa e radical. Por que — nas escolas, nos colégios, nas universidades — insistimos em lhes dar só a primeira imagem do poeta, cheia de ferrugem e cheirando à morte? Por que insistimos em assassinar Castro Alves e sua poesia?
Para atrair os jovens para a
leitura e a literatura, precisamos, primeiro, convencê-los de que a literatura
está viva. Mais que isso: que ela tem o poder de interferir e dar sentido às
suas vidas. A leitura é uma espécie imóvel de viagem interior. Considero que a
literatura, mais que um trabalho ou um ofício, é um ato e uma travessia — uma
viagem para dentro. Na literatura não há certo ou errado: há o singular. Para
cada leitor, um mesmo livro será, sempre, um livro diferente. O "Madame
Bovary" que leio não é o mesmo romance, "Madame Bovary",
que você lê. A minha "A metamorfose" não é a sua "A
metamorfose". O escritor paraguaio Augusto Roa Bastos sintetizou isso
assim: "Cada livro é um livro diferente na cabeça de cada leitor".
Dizia mais: que, a rigor, os livros não existem, existem apenas aqueles
que os leem.
Por quê? Porque para ler não é
necessário — e é até perigoso — seguir regras, modelos, "leituras
autorizadas", prescrições de especialistas. Ao contrário: quando
um leitor lê um livro, ele o reinventa. Podemos dizer até: ele o reescreve
dentro de si. Apostilas, exercícios, correção de provas, receituários só
separam o leitor de seu livro. A imagem mais perfeita do leitor é a
daquele menino que, trancado em seu quarto, escondido sob seu cobertor e munido
apenas de uma lanterna, refugia-se do mundo para ler. Para viajar através de
seu livro. Só há literatura, portanto, em silêncio e solidão. Quando abre um
livro, o leitor faz isso sempre por sua conta e risco.
É, de fato, muito perigoso ler. A
leitura pode provocar fortes impactos interiores, danificar clichês e
superstições, e instaurar novas (e inesperadas) maneiras de observar o mundo.
Mas, como nas grandes aventuras a mundos desconhecidos e remotos, a viagem
através dos livros também promete surpresas e maravilhas. Promete algo ainda
mais precioso: em meio a um mundo fragmentado, veloz e superficial, a leitura
(a literatura) promete um reencontro consigo mesmo. Uma "queda em
si", como prefiro dizer. Ao ler, o sujeito volta a ser dono de si mesmo.
Ao ler, ele se reencontra. Ao ler, ele se conecta, outra vez, a um
sentido. A literatura oferece uma multiplicidade de sentidos — em um mundo
que, em geral, nos parece reto e indiferente. Em meio ao uníssono do
contemporâneo, no qual todas as coisas se equivalem, a literatura nos apresenta
à diversidade e à dissonância. Entre escombros e em meio ao vazio, ela pode nos
salvar. Não é fácil, porém, convencer os jovens disso. Não existe outra maneira
de conhecer o prazer da leitura senão lendo. Aqui é inevitável recorrer ao
velho clichê: é como andar de bicicleta, ou como surfar, só se aprende andando,
ou surfando.
A melhor maneira de aproximar os
jovens da literatura não é, portanto, submetê-los a compêndios, a apostilas e a
cânones. Mas levá-los, desde os primeiros momentos, a se defrontar com os
próprios livros. Não existe outro caminho para a experiência da leitura senão a
própria leitura. A literatura é a própria salvação da literatura.
* Palestra apresentada no III Congresso Internacional de Literatura Infanto-Juvenil, realizado este mês, na PUC de Porto Alegre, sob a direção da professora Vera Aguiar.
Disponível
em http://blogs.oglobo.globo.com/jose-castello/post/a-literatura-entre-escombros-444904.html.
Acesso em 25 jan. 2017.
1. Após a leitura do texto, identifique o papel da Literatura.
2. Agora, explique o título do texto.
3. Com base na discussão feita em sala de aula, responda às questões
abaixo.
a) O que é um texto literário?
b) O texto lido pode ser considerado literário?
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