Crônica argumentativa: Prazeres da carne, Ruy Castro

Quando se veem num daqueles dias sem assunto, os jornais vão às gavetas e pescam um telegrama alertando contra os tremendos riscos para quem come carne vermelha. Embora os jornalistas sejam, em grande maioria, carnívoros, eles sabem que esse é o tipo de notícia que nenhum incauto deixa de ler.
A fonte do telegrama é sempre uma revista americana sobre a qual não resta a menor dúvida, como a respeitada International Journal of Câncer ou a não menos famosa Horrendous Diseases Report. Você lê a matéria, e seu aparelho digestivo começa a desprender chispas, faíscas e ruídos – sem dúvida, ecos dos 415 maravilhosos bifes que você devorou nos últimos meses. Outro dia os jornais deram uma dessas matérias e, como todas do gênero, cheia de detalhes repulsivos. Os cientistas disseram que “quem come carne vermelha mais de treze vezes por semana corre o dobro do risco de ter câncer no estômago ou esôfago do que alguém que nunca come carne vermelha”. Note bem: “mais de treze vezes por semana”.
Bem, vejamos. Isso quer dizer que não há problema em comer carne vermelha até treze vezes por semana? Se for assim, vamos cair nos braços uns dos outros e pedir ao garçom mais uma fatia de maminha. Mas suponhamos que, por um erro de tradução do telegrama, a matéria quisesse que o número fatal são exatamente as treze vezes. Pois, mesmo nesse caso, quem está correndo risco? Carne vermelha treze vezes por semana significa almoçar e jantar carne vermelha TODOS os dias, exceto, talvez, na noite de domingo. E, por mais que goste de carne vermelha, nem o leão da Metro aguentaria essa dieta. Muito melhor (e, sabemos agora, mais saudável) é variar um pouco. Por sorte, o mundo está cheio de alternativas à diabólica carne vermelha. Eis algumas.
Segunda-feira: carne vermelha no almoço e vatapá com moqueca de siri-mole no jantar. Terça: carne vermelha no almoço e galinha ao molho pardo no jantar. Quarta: carne vermelha no almoço e buchada de bode no jantar. Quinta: carne vermelha no almoço e pirarucu à belle meunière no jantar. E por aí afora, com uma pequena variação no sábado, que constaria de uma feijoada no almoço e, aí sim, a carne vermelha no jantar. No domingo, a carne vermelha do almoço poderia ser rebatida com um frugal alka-seltzer no jantar. Com isso, você terá reduzido o seu consumo de carne vermelha a sete vezes por semana, o que significa que o seu risco de contrair câncer caiu para a metade. Ou seja, exatamente igual ao de quem nunca come carne vermelha.
E, segundo os cientistas ouvidos pelos jornais, esse risco pode ser reduzido ainda mais. Basta que, ao pedir o seu filé no restaurante, você exija que ele venha malpassado. Isso mesmo: segundo os médicos, a carne bem-passada é um veneno. Contém substâncias agregadas ao cotidiano que agridem os tecidos e podem levar a formação de tumores. A partir de agora, portanto, você poderá exercitar sem o menor remorso a sua antiga e secreta preferência pelas postas meigas e sangrentas da picanha, que o fazem sentir-se quase um irmão do boi que acabou de ser depositado no seu prato. Ninguém, nem mesmo sua nova namorada vegetariana, poderá despejar-lhe um daqueles olhares de faquinhas, como se você fosse um abominável canibal. E se ela se atrever a isso, você dirá que está apenas seguindo conselhos médicos.
Você talvez queira saber como os cientistas chegam a essas impressionantes conclusões. A resposta é ade sempre: torturando ratos em laboratório. Para a tal pesquisa sobre a carne vermelha, uma colônia de ratos americanos foi obrigada a comer steaks ao sal grosso durante meses, sem o benefício de um chope e de reles prato de fritas, até que os doutores chegassem a uma conclusão. Não admira que, ao fim da pesquisa, metade dos ratos tivesse se tornado vegetariana, e a outra metade tivesse preferido contrair câncer.
Um desses laboratórios planeja agora estudar o risco de o queijo também provocar câncer. Mas parece que, desta vez, usarão cobaias humanas.

Crônicas para ler na escola.
1. O cronista desenvolve reflexões a partir de fatos cotidianos e faz o leitor conhecer outro ponto de vista sobre o assunto.
a) Que informações Ruy Castro buscou para escrever "Prazeres da carne"?
b) Que fato do cotidiano aparece nessa história?
2. Na crônica argumentativa, o texto deve desenvolver uma argumentação, isto é, apresentar um ponto de vista, argumentos e estratégias. O cronista usou como argumentos exemplos, dados numéricos e testemunhos, entre outros. A argumentação desenvolvida em "Prazeres da carne" se vale dos mesmos recursos que uma pesquisa científica? Por quê?
3. As crônicas podem ser reflexivas, humorísticas etc. Em todos esses casos, uma característica se mantém: uso de linguagem mais informal, que aproxima o texto do leitor. Transcreva da crônica um exemplo de informalidade.
4. Em um texto escrito, a interação entre locutor e o interlocutor ocorre de forma direta ou não. Transcreva um trecho em que há interlocução explícita.
5. Identifique:
a) Opinião do cronista.
b) Dado da pesquisa criticado pelo cronista.
c) Número na pesquisa questionado pelo cronista.
d) Crítica feita á forma como pesquisas forma desenvolvidas.
e) Estratégia utilizada pelo texto para ironizar a pesquisa.

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